NÉVITON gUEDES - Desembargador trf-1
CONSTITUIÇÃO E PODER
O direito de ser bem acusado,
ou nem tudo pode numa acusação
O Estado Democrático e a sociedade que ele representa têm que lutar com todas as suas forças contra o obscurantismo advindo de apelos irracionais daqueles que acreditam que, para saciar nosso desejo de sangue e de justiça, nos tempos que correm, como na inesquecível canção de Cole Porter, qualquer coisa serve, “qualquer coisa vai” (anything goes).
Não, numa democracia, nem tudo pode, nem tudo serve. Ainda que a impunidade nos confronte com desenvoltura, também aí, para lembrar a célebre frase de um admirado Ministro do STF, a democracia cobra o seu preço. Em verdade, muito do que a Constituição faz é insistir nessa ideia prosaica. Vejamos.
Ninguém tem o desejo e muito menos a pretensão de ser acusado. Por isso, a afirmação de que o indivíduo tem o direito a uma boa acusação poderá – para muitos – encerrar verdadeiro paradoxo. Entretanto, superada a surpresa inicial, o fato é que, se ainda somos uma sociedade governada por leis e não pelo humor da opinião pública, facilmente se conclui que, na nossa ordem constitucional, existe um induvidoso direito fundamental a uma acusação justa, o que implica dizer: uma acusação precisa quanto à narração dos fatos, coerente quanto a sua conclusão (pedido) e, além de tudo, juridicamente fundamentada. Mais do que isso, também o Judiciário não está livre, nas decisões que profere, especialmente, em caso de condenação, de demonstrar que a conclusão de seu raciocínio manteve absoluta congruência com os fundamentos, as provas e o pedido como realmente foram deduzidos pelo autor da demanda inicial e, ainda mais importante, em total respeito e consideração pelo que, no curso do processo, foi submetido ao crivo do contraditório e defesa do acusado.
O advogado experiente poderia objetar que uma acusação genérica na narrativa dos fatos, inconsistente em seus fundamentos jurídicos e incoerente no pedido apresentado, acabaria sempre por favorecer o acusado, já que a acusação mal construída, seja pela imprecisão dos fatos descritos ou pela incongruência lógica entre motivos e conclusão (pedido), deveria resultar sempre em julgamento favorável daquele contra quem se levantou o poder acusatório do Estado. Infelizmente, contudo, cuidando-se da justiça dos homens, nem sempre a lógica e o bom senso prevalecem como resultado de seus julgamentos.
Numa época como nossa, em que a sensação de impunidade estimula a presunção de que todos são culpados até que provem o contrário, quando sepassa a admitir acusações deduzidas de forma genérica, onde fatos imprecisos se cruzam com provas aceitas de forma aberta e indeterminada (predispostas a provar tudo e nada), pode-se pedir qualquer coisa sobre qualquer coisa, pois, ao final, restará sempre uma certeza difusa no órgão julgador de que, por entre aquela maranha de fatos e provas e diante do apelo público contra a impunidade, alguma condenação deva ser imposta.
De fato, não é raro que a ausência de precisão, ou a inexistência de congruência lógica entre fatos e pedido, na peça acusatória, acabe por favorecer um ambiente já turvado pelo anseio difuso de quem pretende “fazer justiça a qualquer preço”, não importando para tanto que, numa ou noutra ação, sejam atropelados os postulados do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Aqui um bom juiz nunca recusará um pouco mais de cuidado e prudência na análise e interlocução lógica dos fatos e do pedido à luz do que se permitiu ao acusado, diante da delimitação promovida na própria inicial, apresentar como defesa e contraditório.
No Estado Democrático de Direito, “justiça a qualquer preço” não passa de desabrida violação aos padrões mínimos de civilização hoje constitucionalizados em todos os países que de fato e de direito podem trazer sem rubor as cores e marcas da democracia. Processo justo, não apenas para o acusado, mas também para a acusação e até mesmo para a vítima, é, antes e sobretudo, numa democracia constitucional, o processo devido, nomeadamente o processo em que se respeita e garante os postulados do contraditório e da ampla defesa.
Diversamente do que corriqueiramente se insinua, o contraditório e a ampla defesa, características essenciais ao devido processo legal, para muito além de interessarem apenas ao acusado, precisamente, por propiciarem o único itinerário em que a verdade pode desenvolver-se sob o signo da racionalidade, e não da violência e do arbítrio, acabam por interessar também e em grande medida ao Estado e à vítima, que obviamente não querem a condenação de um indivíduo qualquer em cujo castigo, obtido não importa como, possam saciar um mal explicado desejo primitivo de vingança. Ao contrário, o Estado e a vítima, é de se esperar, almejam justiça verdadeira e plena, isto é, aquela que resulta de decisões que se suportam em procedimentos e impulsos oficiais que, por se submeterem ao permanente confronto da ampla defesa e do contraditório, podem, a qualquer momento, justificar-se racionalmente.
No âmbito de nossa mais elevada jurisprudência, lembra o Min. Gilmar Mendes que o Supremo Tribunal Federal, em processos acusatórios, tem emprestado especial homenagem ao princípio do devido processo legal, ao ponto de exigir respeito à ampla defesa e ao contraditório já ao início da demanda, ao censurar e proscrever como juridicamente inadmissíveis aschamadas denúncias genéricas ou imprecisas (cito):
“Outra questão relevante na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal diz respeito ao contraditório e à ampla defesa exercida em face de denúncia genérica ou que não descreve de maneira adequada os fatos imputados ao denunciado. É substancial a jurisprudência do Tribunal, que considera atentatório ao direito do contraditório o oferecimento de denúncia vaga ou imprecisa, por impedir ou dificultar o exercício do direito de defesa. [1]”
Mais uma vez, infelizmente, o óbvio exige proclamação. O que o Supremo está a afirmar é que, mais do que o antigo dogma que sustenta a ideia de que o acusado se defende dos fatos, devemos tomar a sério a conclusão de que, bem observado o contraditório e a ampla defesa, na exigência de uma denúncia precisa, revestida de densidade e coerência, pode-se concluir que, ainda com mais razão, o acusado se defende realmente é apenas do conjunto de fatos que, da profusão de circunstâncias eventualmente contidas nos autos, o autor resolveu delimitar na peça inaugural e atribuir-lhe a autoria.
Em outras palavras, ainda que a denúncia ou acusação possam ser sucintas, não se pode esquecer que o acusado se defende dos fatos a ele imputados(com precisão e coerência), ou seja, ele se defende não do universo de fatos eventualmente constantes dos autos, mas dos fatos que, desse universo, o órgão acusador resolveu, com precisão, destacar e imputar-lhe a autoria. De nada valeria a exigência de precisão e certeza da narrativa dos fatos, se além daqueles fatos a ele imputados, o acusado tivesse que se defender e pudesse ser condenado por fatos não destacados – repito, com precisão - na denúncia ou peça acusatória (no caso da ação de improbidade). Por incrível que pareça, em denúncias genéricas, nem sempre tais distinções serão percebidas e muito menos respeitadas.
Para quem se interessa pelo tema, na sequência de sua sempre ilustrada retórica, o Min. Gilmar Mendes refere uma sequência de expressivos precedentes que deram corpo a essa verdadeira jurisprudência de promoção da liberdade[2].
Neste passo, devo insistir, obviamente, o dever de imputações precisas, certas, densas e coerentes, como exigido pelo Supremo, impõe-se e estende-se a todos os processos dos quais possam resultar restrições aos mais caros direitos fundamentais do acusado, como são as restrições ao direito fundamental de ir e vir (no caso do processo penal), assim como limitações aos direitos políticos e aos demais direitos de liberdade (caso da ação de improbidade e qualquer outro processo que tenha, direta ou indiretamente, a eficácia da inelegibilidade).
Bem observados os fatos, o que aqui se verifica é a exigência de transposição do plano da tipicidade cerrada (prévia, escrita, certa e estrita), antes restrito ao âmbito da abstração da lei, para a esfera concreta do processo. De fato, se, pelas sérias consequências para os direitos fundamentais do cidadão, as acusações por prática de crimes, de atos de improbidade ou que impliquem inelegibilidade, exigem, no âmbito abstrato da lei, a prescrição e certeza de condutas hipoteticamente conformadas (Tatbestand) sob o signo do princípio da tipicidade cerrada, com mais razão ainda, na concretização do processo, a necessidade de garantia eficiente dos direitos do cidadão há de exigir acusações precisas, coerentes e fundamentadas, assim como decisões judiciais congruentes com o que proposto e apurado sob o crivo do contraditório e da ampla defesa.
Em resumo, como se sabe, a exigência de tipicidade fechada (1) não consente com retroatividade de leis incriminadoras, (2) proíbe a criminalização de condutas com fundamento em humores e costumes sociais (postulado da norma escrita), (3) não aceita a indeterminação da norma incriminadora (que deve ser certa) e (4) não admite a analogia para prejudicar o acusado (postulado da norma estrita). Contudo, não basta a esse conjunto de garantias que a proteção ao cidadão seja apenas promovida na abstração da norma incriminadora; nada disso teria valor, se, no momento de acusar, a denúncia criminal ou petição inicial de um ação de improbidade pudesse ser genérica ou imprecisa quanto à narrativa dos fatos e incoerente com a sua conclusão (pedido). Além disso, todas essas garantiras também estariam irremediavelmente comprometidas se, depois de desenvolvida a defesa e o contraditório, pudesse o magistrado desconectar-se dos fundamentos e/ou do pedido, como então desenvolvidos nos autos, para, com violação ao princípio da congruência, proferir decisão logicamente incoerente com o que as partes afirmaram, provaram e pediram nos autos.
Para tudo resumir e concluir, o princípio da tipicidade estrita, em matéria de acusação, deve, para ser eficaz na proteção do contraditório e da ampla defesa, transpor as margens da abstração da lei e concretizar-se numa acusação precisa, coerente e bem fundamentada que, posteriormente, deverá encontrar eco numa sentença que se revele congruente com os fundamentos de fato e de direito, com as provas e com o pedido deduzido na inicial, sempre com máxima consideração ao que a defesa, considerada a delimitação dos fatos que a acusação lhe imputou, alcançou também produzir.
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.
Revista Consultor Jurídico, 8 de setembro de 2014, 10:42