Fotógrafo italiano vai à Cracolândia e registra efeito da droga: “Queria saber até onde o ser humano pode chegar”
Alessio Ortu passou um ano clicando a realidade de moradores na região do centro de São Paulo. O resultado é o projeto “Simulacrum Praecipitii”, que deu origem a um livro, exposição e documentário. Em entrevista à Marie Claire, ele fala sobre a experiência
Na última semana de novembro, o atual governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, anunciou a decisão de terceirizar o atendimento aos usuários de crack da região central da capital paulistana. O novo espaço da Cracolândia, que funcionará de segunda a sábado e tem previsão de ficar pronto até fevereiro de 2014, deve contar com área de internação que terá "moradias de crise" para 30 dependentes químicos, atividades esportivas e culturais para 100 usuários por dia, 21 leitos de desintoxicação e dormitórios onde os dependentes poderão morar por até três meses.
Marie Claire: De onde surgiu a ideia de fazer o projeto “Simulacrum Praecipitii”?
Alessio Ortu: Tudo começou quando, alguns anos atrás, me mudei para São Paulo e me impressionei com essa realidade vista no centro da cidade. Algo tão diferente de outros lugares que morei na Europa e América do Norte. Em setembro de 2011 dei início ao projeto e fotografei durante um ano.
MC: As fotos geraram um livro, uma exposição e um documentário, certo?
A.O: Sim. Do livro surgiu a exposição, que ficou em cartaz no Palácio da Justiça em novembro. O documentário “Simulacrum Preacipitii - a visão do abismo” estreou em festivais de Gramado, Goiás, Cuba e Mar Del Plata. No início do próximo ano a exposição entrará em cartaz na OAB. (Confira o trailer clicando aqui ou na imagem abaixo).
MC: Como se comportavam as mulheres que você clicou? Eram violentas?
A.O: O temperamento de todos eles –homens e mulheres - é igual. Quando percebem que você chega lá com boas intenções, querendo ajudá-los e não se aproveitar de uma situação, eles colaboram. Eles querem ser ouvidos. Fui quase sempre bem acolhido.
MC: Como elas reagiam quando propôs clicá-las?
A.O: A maioria pedia dinheiro para alguma coisa e perguntavam qual era o objetivo. O que ajudou também é que cheguei neles de modo diferente dos jornalistas. Antes mesmo de começar a clicar, via outros profissionais tentando fazer fotos de longe, sem serem percebidos. Isso deixa os moradores de lá muito irritados porque se sentem roubados. Agi diferente: fui lá e pedi autorização.
MC: Como era a rotina de fotos?
A.O: Não dá para ir todo dia, pois você fica marcado e é perigoso. Ia lá toda semana ou a cada 15 dias, saía bem cedo de casa e ia direto para o foco da Cracolândia. Às vezes levava horas para chegar na pessoa certa, porque tem fugitivos, traficantes, pessoas que não queriam aparecer e outras que estavam loucas e não entendiam nada do que eu falava. Mas, quando começava a fotografar, ficava mais fácil. Quando um deles já estava sendo clicado, os outros ficavam mais confiantes. Às vezes tinha até fila de espera para as fotos.
MC: Como você os abordava?
A.O: Eu os parava nas ruas e ia direto ao ponto: perguntava se fumavam crack, se moravam nas ruas e se queriam ser clicados. Explicava que estava fazendo um projeto pessoal, sem ligação com a mídia ou fins comerciais. Acho que o fato de eu ser estrangeiro também ajudou um pouco, pois eles ficavam interessados nos meus motivos para me interessar por essa realidade em São Paulo.
MC: Foi atacado por algum viciado?
A.O: Não, em nenhum momento. Havia pessoas mais agressivas, que não queriam ser clicadas, mas eu respeitava e não insistia. Vi brigas entre elas, algumas até mais violentas, mas simplesmente observei. Vi prostitutas que usavam a prostituição para comprar o crack.
A.O: Foi bem impactante ver o tamanho do problema. Na Europa a realidade social é mais controlada. Não tem essa pobreza extrema. O mais chocante é que isso acontece sob nossos olhos, num lugar lindo e histórico. É muito descuido.
MC: Muitas fotos de sua série têm o foco nas mãos. Por quê?
A.O: Veio de forma muito natural, já que as mãos retratam muito de nossa alma. Elas fazem tudo, principalmente para quem mora nas ruas. Eles as usam para comer, catar lixo, roubar, se prostituir, se drogar. As mãos dessas pessoas são destruídas, mostrando os sinais da devastação da vida nas ruas. São claramente feias, mas consigo ver uma beleza plastificada nelas.
MC: Você viu coisas que as pessoas associam às drogas? Prostituição, crimes...
A.O: Vi mulheres que usavam a prostituição para comprar o crack. Também não me interessava porque acho isso sensacionalista, já que, infelizmente, é um dos únicos jeitos que elas têm de conseguir as drogas. Mulheres se prostituem, crianças e outras pessoas catam lixo, tralhas de casas. Por incrível que pareça, a minoria rouba para se drogar. Apesar da mídia mostrar o contrário, poucos roubam. Na Cracolândia as pessoas catam lixo para comprar a droga. Essa é a realidade.
MC: Qual história mais mexeu com você?
A.O: Vários casos, mas o dos menores de idade é impressionante. Não pude mostrar o rosto deles, então tive que clicar com as mãos cobrindo, já que, segundo a lei, eles não devem aparecer. A história deles é muito triste: são meninos e meninas entre 14 e 16 anos, que estão vivendo nas ruas.
MC: Você se envolveu emocionalmente em algum momento?
A.O: Sem dúvida. Fui lá principalmente para conhecer a história dessas pessoas e devolver a dignidade e humanidade para elas, que são ignoradas e desprezadas por todos. Cada pessoa que encontrava perguntava a história pessoal, para saber como acabaram nessa situação. Cada caso é muito impactante porque mostra a gravidade do problema e o quanto é difícil escapar da situação.
MC: É uma realidade paralela?
A.O: Sim, e o pior: acontece no meio da cidade. Ninguém se importa com esse problema, as pessoas preferem fingir que nada está acontecendo. Isso também foi um dos motivos que me levaram a fazer esse projeto: deixar de ignorar o assunto. As pessoas tendem a não querer saber sobre isso, até como forma de autoproteção. É uma carga espiritual muito negativa, a tendência é que a população evite contato com os moradores de lá. Com essa série, quis me confrontar com esse aspecto da população que mora num nível de pura sobrevivência. Queria saber até onde o ser humano pode chegar para continuar existindo.
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Com o objetivo de "devolver o sentido de dignidade e humanidade a quem é desprezado por todos", o fotógrafo italiano Alessio Ortu passou um ano clicando a cada 15 dias os viciados em crack. O resultado da série foi o projeto “Simulacrum Praecipitii” ("A imagem do abismo", em latim), composto de livro, exposição e documentário. Este último percorre atualmente vários festivais de cinema, de Gramado a Mar Del Plata. Em entrevista à Marie Claire, Alessio falou sobre o que viu durante o período em que frequentou a Cracolândia e afirma: “Nem todo dependente de lá é ladrão como mostram”.Marie Claire: De onde surgiu a ideia de fazer o projeto “Simulacrum Praecipitii”?
Alessio Ortu: Tudo começou quando, alguns anos atrás, me mudei para São Paulo e me impressionei com essa realidade vista no centro da cidade. Algo tão diferente de outros lugares que morei na Europa e América do Norte. Em setembro de 2011 dei início ao projeto e fotografei durante um ano.
MC: As fotos geraram um livro, uma exposição e um documentário, certo?
A.O: Sim. Do livro surgiu a exposição, que ficou em cartaz no Palácio da Justiça em novembro. O documentário “Simulacrum Preacipitii - a visão do abismo” estreou em festivais de Gramado, Goiás, Cuba e Mar Del Plata. No início do próximo ano a exposição entrará em cartaz na OAB. (Confira o trailer clicando aqui ou na imagem abaixo).
MC: Como se comportavam as mulheres que você clicou? Eram violentas?
A.O: O temperamento de todos eles –homens e mulheres - é igual. Quando percebem que você chega lá com boas intenções, querendo ajudá-los e não se aproveitar de uma situação, eles colaboram. Eles querem ser ouvidos. Fui quase sempre bem acolhido.
MC: Como elas reagiam quando propôs clicá-las?
A.O: A maioria pedia dinheiro para alguma coisa e perguntavam qual era o objetivo. O que ajudou também é que cheguei neles de modo diferente dos jornalistas. Antes mesmo de começar a clicar, via outros profissionais tentando fazer fotos de longe, sem serem percebidos. Isso deixa os moradores de lá muito irritados porque se sentem roubados. Agi diferente: fui lá e pedi autorização.
MC: Como era a rotina de fotos?
A.O: Não dá para ir todo dia, pois você fica marcado e é perigoso. Ia lá toda semana ou a cada 15 dias, saía bem cedo de casa e ia direto para o foco da Cracolândia. Às vezes levava horas para chegar na pessoa certa, porque tem fugitivos, traficantes, pessoas que não queriam aparecer e outras que estavam loucas e não entendiam nada do que eu falava. Mas, quando começava a fotografar, ficava mais fácil. Quando um deles já estava sendo clicado, os outros ficavam mais confiantes. Às vezes tinha até fila de espera para as fotos.
MC: Como você os abordava?
A.O: Eu os parava nas ruas e ia direto ao ponto: perguntava se fumavam crack, se moravam nas ruas e se queriam ser clicados. Explicava que estava fazendo um projeto pessoal, sem ligação com a mídia ou fins comerciais. Acho que o fato de eu ser estrangeiro também ajudou um pouco, pois eles ficavam interessados nos meus motivos para me interessar por essa realidade em São Paulo.
MC: Foi atacado por algum viciado?
A.O: Não, em nenhum momento. Havia pessoas mais agressivas, que não queriam ser clicadas, mas eu respeitava e não insistia. Vi brigas entre elas, algumas até mais violentas, mas simplesmente observei. Vi prostitutas que usavam a prostituição para comprar o crack.
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MC: Como foi ver uma realidade bem diferente da europeia?A.O: Foi bem impactante ver o tamanho do problema. Na Europa a realidade social é mais controlada. Não tem essa pobreza extrema. O mais chocante é que isso acontece sob nossos olhos, num lugar lindo e histórico. É muito descuido.
MC: Muitas fotos de sua série têm o foco nas mãos. Por quê?
A.O: Veio de forma muito natural, já que as mãos retratam muito de nossa alma. Elas fazem tudo, principalmente para quem mora nas ruas. Eles as usam para comer, catar lixo, roubar, se prostituir, se drogar. As mãos dessas pessoas são destruídas, mostrando os sinais da devastação da vida nas ruas. São claramente feias, mas consigo ver uma beleza plastificada nelas.
MC: Você viu coisas que as pessoas associam às drogas? Prostituição, crimes...
A.O: Vi mulheres que usavam a prostituição para comprar o crack. Também não me interessava porque acho isso sensacionalista, já que, infelizmente, é um dos únicos jeitos que elas têm de conseguir as drogas. Mulheres se prostituem, crianças e outras pessoas catam lixo, tralhas de casas. Por incrível que pareça, a minoria rouba para se drogar. Apesar da mídia mostrar o contrário, poucos roubam. Na Cracolândia as pessoas catam lixo para comprar a droga. Essa é a realidade.
MC: Qual história mais mexeu com você?
A.O: Vários casos, mas o dos menores de idade é impressionante. Não pude mostrar o rosto deles, então tive que clicar com as mãos cobrindo, já que, segundo a lei, eles não devem aparecer. A história deles é muito triste: são meninos e meninas entre 14 e 16 anos, que estão vivendo nas ruas.
MC: Você se envolveu emocionalmente em algum momento?
A.O: Sem dúvida. Fui lá principalmente para conhecer a história dessas pessoas e devolver a dignidade e humanidade para elas, que são ignoradas e desprezadas por todos. Cada pessoa que encontrava perguntava a história pessoal, para saber como acabaram nessa situação. Cada caso é muito impactante porque mostra a gravidade do problema e o quanto é difícil escapar da situação.
MC: É uma realidade paralela?
A.O: Sim, e o pior: acontece no meio da cidade. Ninguém se importa com esse problema, as pessoas preferem fingir que nada está acontecendo. Isso também foi um dos motivos que me levaram a fazer esse projeto: deixar de ignorar o assunto. As pessoas tendem a não querer saber sobre isso, até como forma de autoproteção. É uma carga espiritual muito negativa, a tendência é que a população evite contato com os moradores de lá. Com essa série, quis me confrontar com esse aspecto da população que mora num nível de pura sobrevivência. Queria saber até onde o ser humano pode chegar para continuar existindo.
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